segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Soneto para desamar

Soneto para desamar
Hoje é dia de ficar triste e em choque,
que um sol se pôs no horizonte pra mim,
que vi baixarem seus braços enormes,
vi fulgurarem seus raios noutros fins.

Hoje é dia de ficar muito triste,
que seu olhar de fogo em silêncio solta:
‘meu calor não se contém, não resiste,
aquecerei gentes de outras sortes...’

Mas um dia esse sol retornará aberto
e lograrei- fé em Deus!- não me queimar,
não mais mirar sua luz tão de perto,

e aí serei apenas mais um a olhar
esse sol, ex-centro de meu universo,
que um dia, sorrindo, me fez celebrar.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Terei paciência (poema)

Terei Paciência

Terei paciência pra te amar.
Sim. Terei paciência para desentranhar das linhas
que nos separam a mais doce paciência para te amar.
Não sofrerei pra desovar o que há em mim,
febre de amor convertida
em pedra preciosa do contato,
em pedra que explode parada,
em slow motion,
dentro de mim.

Sim terei paciência.
Muita pra te amar
e pra te fazer você sem mim,
te deixar ser sem mim.
Pra assim você-
pedra do sono
inquieto dentro de mim-
derreter,
e se virar e ver,
que estou
aí.

sábado, 10 de outubro de 2009

Cinco efeitos colaterais do amor

Parte de ti cheira ao esmo
querido
Parte de mim cheira ao mofo
deslindado do saber
Parte de nós unidos
está nos livros
Emaranhada entre linhas.
Outra está na vida,
grande demais
para ser
Entendida

Depois de uma pausa revitalizante, voltemos para falar de coisa mais amena. Falemos de amor. "Amena o escambau!", dirão muitos que já sofreram e sofrem do amor que não foi ou do quase-amor. Amena para aqueles que o experenciaram nas suas várias formas. O amor em suas várias formas. Literariamente, o amor (R)romântico que escandaliza e o amor (R)realista que revela. Na vida, o amor que une e o amor que separa... Pois não sendo possível defini-lo nem nos livros nem na vida, como nos atestam poetas vida a fora e a dentro, vamos nos esfolar pelas suas tangentes e listar cinco efeitos colaterais do amor.
1. Antes de mais nada é preciso admitir que todos os amantes são uns chatos. Apartam-se dos demais da espécie para egoisticamente se empanturrar no amor. Mesmo que dele brotem frutos de todas as espécies,- até humanos (babies)- é duro para a galera do chupa-dedo o abandono de amigos e compromissos em nome do amor.
2. A cegueira do brilho do amor. Inebriante. Embobeirante. Mas o que seria do mundo sem ele?Que seriam das bilheterias dos filmes e dos lucros dos hits de amor? Aliás, há filmes e hits que não sejam de amor? Aliás, há arte que não seja amor-ebulição à beira de entornar?
3. O diálogo dos amantes demora se estabelecer e até que isso aconteça temos dois monólogos esquizofrenizantes. É o momento da dúvida, da hesitação, do vou/não vou. A característica marcante desse efeito colateral é o extremo ensimesmar do sujeito, sua partida para o quasar dos amantes, longe anos-luz daqui.
4. Polêmica. Polemizemos: onde há amor não cabe ciúme. Nem o chamemos de efeito colateral porque não é do escopo do amor. É da ordem do mais perverso rebaixamento reificante do ser. No entanto, sua insinuação, a sugestão apenas do ciúme, mexe lá com ânimos que servem para dar uma sacudida e uma reorientação nos pontos de vista dos amantes e reafirmar seus caminhos.
5. O amor e o tempo. Ambos feitos de cera, não resistem muito a intempéries. Há quem defenda os retoques. Há quem parte mesmo para a remodelagem e para a substituição da forma. O mito do amor eterno é fantasia alimentada pelas instituições de união civil, mas é "a treva" para quem o enxerga como ameaça à liberdade da solteirice. No entanto, a manutenção desse mito é necessária para que o número de uniões abençoadas não seja extrapoladamente maior que o número de sacerdotes que têm coragem de intermediá-las.

domingo, 19 de julho de 2009

O poder dos espelhos desviantes

Na cidade dos espelhos desviantes há muito ódio porque esses espelhos realçam o centro em que nele miram alguns em detrimento de quem fica atrás ou de redor, cuja imagem fica ainda mais de escanteio e diminuída. Os fortes e os mais egoístas, os naturalmente mais vaidosos brilham bem no centro desses espelhos espalhados pela cidade, nos elevadores, nos corredores e até em frente de bancos de coletivos e de lanchonetes. Até comendo os imageticamente privilegiados garantem sua vaga bem no centro do espelho desviante. Os gentis, os educados e os que não sabem pedir espaço para ajeitarem seus topetes penam. Também os apaixonados deslumbrados por seus objetos de amor não tem vez no espelho desviante porque se exaurem nos cuidados milimétricos para deixar seus amores bem localizados no centro da mira dos espelhos desviantes da cidade.
Os naturalmente vaidosos e egoístas só o são porque os humildes lhe concedem cada vez mais espaço na frente dos espelhos da cidade. Quando quase velhos e cansados de não serem notados, os humildes decidem também ficar em frente do centro dos espelhos desviantes. Maquiam-se como seus rivais ou objetos de desejo de amor e vão também brigar pelo espaço central, na mira dos numerosos espelhos espalhados pelos caminhos da cidade. Mesmo quando quase velhos e cansados, os vaidosos e donos do centro dos poderodos espelhos desviantes não cedem seu espaço central. Eles arrumam outra maquiagem e vão brigar com os ex-humildes por outro lugar bem na frente do espelho que desvia a imagem de quem não pula bem na sua frente exata.
O desvio poderia ser o sossego do esquecimento e do apagamento, mas não é porque os espelhos desviantes estão na cidade. E na cidade não tem lugar para o sossego. A luta pela imagem domina a cidade e todo mundo tem ódio da imagem bem focada do outro. Seus espaços resolvidos são espaços em que sempre caberão um espelho desviante. Seus espaços não resolvidos são os espaços do esquecimento em que todo mundo é mundo apenas e não interessa muito, são todos levados correndo para a frente de algum espelho da cidade. A cidade enfim é lugar de agito e briga, é lugar da disputa pela vaga no centro de seus espelhos flutuantes.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O não-lugar das fronteiras no pós-moderno e a praça de Alfenas

Há quinze anos, o lugar onde os jovens frequentam à noite em Alfenas, cidade quase médio porte do sul de MG, apresenta a mesma conformação física geral, mas a massa juvenil que ocupa os espaços de "balada" ou "pré-balada" organizam-se e se distribuem hoje de maneira bastante distinta em relação a duas décadas atrás. Naquele passado recente, tanto o espectro da estratificação social, ligeiramente mais largo e descontínuo, como o comportamento grupo-identitário, mais fechado e excludente, propiciavam a formação de espaços mais definidos de encontro, algo como guetos no céu aberto noturno da praça pública daquela pacata cidade. Esses grupos eram separados mormente pela classe social. Por exemplo, os jovens filhos da "elite" ficavam ao redor de uma esquina específica, sob as luzes de fachadas dos luminosos do comércio local, enquanto os jovens da classe inferior arranjavam-se ao longo da calçada oposta, como de plateia para o outro grupo da calçada "iluminada". Outros grupos numericamente menores como alguns punks, gays e usuários de ilícitos alienantes, cada qual tinham suas partes mais ou menos definidas e específicas demarcadas ao longo do centro da cidade à noite.
Hoje a conformação geográfica noturna desses grupos é mais homogênea, instável e fluída, não havendo mais lugares certos de se encontrar este ou aquele grupo. Por outro lado, as marcas e acessórios físicos de identificação dos jovens multiplicaram-se e se alastraram pelas classes sociais. Deixaram de ser marcas de estilo socialmente discriminadas para serem marcas de estilo politicamente toleradas, tanto que passaram a se distribuir mais amplamente pelas diferentes classes sociais. Tatuados eram bastante associados a classes mais baixas devido ao estigma da criminalidade que a marca impingia. Já os "emos" de hoje, por exemplo, são tanto ricos como pobres.
Com efeito, antes se fazia a separação de território de acordo com a classe social. A delimitação por estilo ou gênero vinha depois da separação de classes, formando sub-categorias dentro das faixas de classe. Hoje são essas marcas identitárias se sobrepõem aos isolamentos de classes sociais. Ou seja, os jovens portam hoje no discurso do corpo aquilo que antes era necessário se isolar em guetos. Vivíamos há vinte anos o enfraquecimento da segregação física de nossos inimigos. Era em parte o efeito dominó da queda de um famoso muro europeu. Era o começo da abertura escancarada para o "mundo globalizado e tolerante", um mito necessário à manutenção do sistema capitalista tardio. Essa aparente diluição de fronteiras físicas e o desenho de marcas no corpo e no visual dos jovens entre essas duas gerações correspondem-se. Ambos são necessários à intensificação do processo de conversão do sujeito reificado em objeto de si próprio (Foucault). Assim, a variedade do ser humano vale para o mercado em suas diferenças e a proliferação de sinais físicos "naturais" (cor, etnias, gênero, sexo et) ou postiços (marcas, penteados, piercings etc) nos corpos têm sua exposição incentivada por essas razões mercadológicas. As reivindicações políticas por parte dos manifestantes dessas diferenças são um fator alimentador do processo e ao mesmo tempo limitante da suposta abertura total porque faz manter essas mesmas diferenças.
Este processo de aparente super-inclusão de todas as diferenças na "aldeia global", para usar termo daquela época, foi gradualmente acompanhado por derrubadas de fronteiras apenas no campo ideológico-mediático nutrido pelo sistema capitalista. Isso ajuda a disfarçar o distanciamento entre as classes sociais. Se hoje os jovens não estão "cada um em seu quadrado" na praça de Alfenas à noite, não é porque houve democratização com aumento da tolerância, mas sim porque as políticas identitárias reinvindicatórias, na forma como se realizam hoje e comentadas acima, alastraram-se de maneira a arrastar a periferia para o centro e promover o convívio, logicamente não raro problemático, entre as classes e os grupos. A "gangue agora sou eu". E é politicamente correto a promoção cultural tanto da bandinha municipal como um show de funk, ambos para o usufruto de todas as classes e grupos passantes que se revezam circulando, sem lugar fixo, "naquela praça, naquele banco" do centro de Alfenas à noite.

domingo, 12 de abril de 2009

O valor de uso e o valor ideal das coisas

Sabemos que as coisas têm seu valor de uso e seu valor de troca. Que a distância e a tranformação entre esses valores é ditado pela técnica no sentido uso-troca e pelo comércio no sentido troca-uso. Ou seja, quem devolve algo que antes tinha um valor de uso limitado, como minério, por exemplo, em chips eletrônicos é detentor de capital acumulativo, que por sua vez se converte em investimento tecnológico para produzir mais "manufaturas" (valor de troca) a partir de mais "matérias-primas" (valor de uso) mais baratas.
Cada coisa contida numa esfera cultural oscila as possibilidades de uso e troca. A conversão de uso para troca é feita especulando-se o maior valor possível, mas nunca é maior que o valor de troca do objeto convertido porque simplesmente não há a conversão, não compensa para a parte interessada no valor de troca futuro do objeto e então ela procura explorar outra fonte da coisa.
A globalização acentuou as consequências do processo exploratório dessa conversão. O que antes era tido como ganha-pão ou artesanato que produzia objetos com valores de troca mais simples teve que se aperfeiçoar nas "co-"operativas para aumentar o processamento de matérias-prima ou de manufaturas mais simples em produtos com mais valor de troca. Isto sob sacrifícios humanos que são mostrados sorridentemente na Globo...
O acirramento da polarização entre os valores de uso e de troca que atribuímos às coisas no mundo moderno está no âmago da problemática do capitalismo financeiro atual. É que os valores de troca terminam por quase vaporizar o objeto dando espaço para as instâncias de poder agirem de maneira a impor mais ampla e fortemente sua ideologia. O desenvolvimento técnico também permite a acumulação desses mesmos valores de troca em um objeto, contribuindo para a nuvem ideológica do círculo reificante sobre este objeto.
Esclarecendo essa dinâmica: hoje em dia, os valores de uso de um objeto são muito rapidamente convertidos em valores de troca. Estes, também se esgotam rapidamente no consumo supérfluo e novo valor de uso lhe é atribuído e fugazmente convertido em valor de troca de novo e assim por diante. Por exemplo, o primeiro telefone celular é bem diferente nas suas funções (valor de troca) quando comparado com algum último modelo: o primeiro usava-se com boca e ouvido e os de hoje se usam mais com dedo e olhos. Ou seja, a conversão entre valor de uso e troca inflacionou-se para o lado da troca a ponto de as próprias necessidades e os parâmetros de troca do objeto em questão terem que ser estimulados e reinventados.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Existo. Logo penso.

Existe um debate antigo sobre se nossa capacidade de apreender o mundo vem de nós mesmos ou é produzida e perpetuada somente na relação entre os indivíduos em seu meio. É a linguagem individual ou social? Como em todos os debates filosóficos, a resposta deve ser a mesma: ambas visões valem. E o que se segue é o uso das duas respostas de forma ideológica por partidários de uma opinião ou de outra.
Um perigo no mato indicado pelo chacoalhar de folhas fazia o índio perceber que se trata de perigo eminente e talvez até identificar o animal que se aproxima. Isso porque ele já viu acontecer, experienciou aquilo de alguma forma, ou foi-lhe informado de alguma maneira. As fases da lua, chuvas e eclipses, a movimentação de animais, a repetição na natureza enfim, determinavam ações ou "inações" que iam sendo armazenadas e transmitidas quer pela tradição oral quer pelas primeiras formas de pintura ou escrita. Há então a comunhão do ato individual desperto pela emergência natural e da experiência compartilhada socialmente através da comunicação por trás das iniciativas de plantar ou colher, mudar/fugir ou ficar onde se estava etc.
A história como descrição tem anulada seu valor de verdade a não ser que admitamos sempre a parcialidade obrigatória na descrição dos fatos porque sempre há de se tomar parte ou da essência do indivíduo ou da supremacia do material como "escreventes" da história.
Às radicalizações das duas ideias, a da origem individual ou social de nossa percepção, corresponderam o nazismo e o marxismo respectivamente, isto numa perspectiva bastante ousada porém intuitiva. O primeiro produziu o arraso europeu após a 1ª Guerra Mundial e deixou lastro tardio na América Latina dos anos 50 aos 70. O segundo ampliou seu conceito à categoria de significação e ganha realce devido a atual crise financeira depois de impulsionar fértil teorização social e cultural a respeito do mundo desde que surgiu no final do século XIX até o momento. Vide para isso os formalistas russos, a escola de Frankfurt e seus discípulos contemporâneos, Raymund Williams na Inglaterra e alguns intelectuais da esquerda latinos, africanos e insulares atlânticos.

terça-feira, 10 de março de 2009

A falsa banalização das palavras

As palavras também têm crises de identidade. Depois que uma palavra fica na moda, salpicando na boca do povo, nos holofotes da mídia ou em textos mais "sérios" quaisquer, ela não fica mais a mesma que antes. Ou seja, seu significado é abalado pelo debater dela na língua. Vamos acompanhar por exemplo o que houve nos últimos anos com a palavra "risco", e também com uma sua correlata, "limite".
"O meu prazer agora é risco de vida", da letra de "Ideologia" (1985) de Cazuza, contém a palavra "risco" empregada para apontar a noção de perigo, de inexorabilidade, neste caso decorrente do terror causado pelas campanhas contra a proliferação da Aids àquela época. Hoje em dia se fala em "risco Brasil", significando algo como um dado matemático acima ou abaixo do qual algo nocivo, não necessariamente morte iminente, ocorre. Ou seja, neste emprego mais recente da palavra "risco", ultrapassando-se ou não a linha que separa o seguro do não seguro indicado na expressão "risco Brasil", as consequências são de outra natureza. Elas são, não por acaso, de natureza econômicas, indicando mais exatamente "prejuízo", consoante com o rumo capitalista de nossa história.
O caso de "limite" é mais curioso porque a trajetória dela no discurso leva a quase inversão do significado quando ela também adentra o campo semântico das relações econômicas. Da idéia de instransponibilidade, de margem definida de um lugar para outro em um espaço qualquer, contida no título do filme Limite (1932) de Mário Peixoto, por exemplo, passa-se para outra idéia hoje em dia como na expressão "limite de crédito". Mas houve com o significado da palavra um afrouxamento da noção de limite propriamente dito no meio da classe média em que ela é usada corriqueiramente. "Estou usando o limite do banco", "Pega do limite", "Olha, meu limite aumentou" são exemplos de como a mudança de contexto transformou o significado da palavra, aqui também atendendo a interesses de quem move o sistema produtivo.
Os dois casos sinalizam afrouxamentos de significados que antes eram mais rigidamente definidores. Pode ser que num futuro talvez próximo elas nem mais existam com esses valores semânticos e sejam substituídas por outras palavras. Mas o que é importante aqui é assinalar que o uso e abuso de certas palavras não se dá de maneira inocente. As mudanças no discurso acompanham rumos históricos e até serve para nos avisar de tendências como a falta de responsabilidade de natureza econômica dos comandantes de megafinanças que culminou com a atual crise mundial. Nesse sentido, tentar interpretar essas mudanças produz o mesmo efeito revelador que a arte exerce em nós, vítimas à deriva das ondas financeiras e discursivas do capitalismo.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Viramos produto na vendinha do Seu Chico

Existiam nas vendas em que a gente ia quando era criança aquelas rodas giratórias de compartimentos de balas e doces miúdos. Algumas dessas geringonças, que devem ter algum nome que alguém pode me lembrar depois, soavam quando giravam. Havia também a vitrine do balcão com mais doces, normalmente os maiores, os pacotes de biscoito e pipocas, que não cabiam lá na gerigonça giratória. Tínhamos ali dentro da venda do seu Chico algum poder no ato da escolha, era nossa perspectiva que reinava ali no ato da aquisição do produto, que tinha que saltar aos nossos olhos sim, chamar a atenção de nossos sentidos para ser barganhado pelo dinheiro. Mas a vidraria de açúcar da venda não nos incluía entre seus produtos como, não nos sentíamos pequenos a ponto dos espaços entre os compartimentos das guloseimas não se tornarem, como hoje, corredores de um shopping center. Não me digam que o meu saudosismo compromete a percepção histórica dos fatos. Comprar não é mais a mesma coisa que há pelo menos pouco mais de meio século porque:
1. Temos que consumir escolhendo entre cada vez mais inúmeras opções e são necessários cada mais itens para satisfazer as necessidades fetichistas e as inventadas
Dizer que somos fetichistas, todos sem exceção, pode causar algum frisson nas mentes mais tacanhas. Mas sim, nossa cultura é a do fetiche, entendido aqui como a idolatração de uma parte ou detalhe de um produto quando não podemos obtê-lo na sua inteireza e plenitude. Da estampa de uma camiseta à marca de um carro: tudo é fetiche. Amamos as partes porque elas nos remetem à busca constante e frustrante do gozo máximo das satisfações mesquinhas de indivíduo ahistórico e apátrida. As guloseimas foram convertidas em pedacinhos de sucesso e glória que abocanhamos no frenesi consumista.
2. Escolher entre mais opções leva mais tempo e a maior variedade aumenta ainda mais o tempo gasto no ato da compra
Isto contribui para o desenraizamento histórico em todos os aspectos. A alienação em relação à tradição deixa-nos a mercê de discursos coisificantes sem lastro com valores com que estávamos acostumados. Por exemplo, para as novas gerações, torna-se mais fácil admitir o interesse material entre as relações humanas, que antes os romances e o drama se exercitavam em revelar. Ironia e comédia são os veículos estéticos predominantes na representação dessas relações hoje em dia, atestando a inquietação artística do destino trágico ligado a elas.
3. As necessidades fetichistas e inventadas acumulam-se e se descartam rapidamente
O supérfluo se reproduz na sensação de reinvenção constante de nós mesmos como produtos de mercado. Só pra ficar em torno de nossas faces, este painel de necessidades compensatórias de carências e ausência de contato humano se reorganiza infinitamente nas capas de revistas, nas "voltas por cima" e nas "repaginadas" do famoso ou famosa do momento. Um semestre depois tais capas vão expirando no imaginário popular enquanto a celebridade em questão planeja ou não um novo releasing, dando sua cara aos tapas da maquiagem e do julgo da audiência novamente. Mesmo escrever em blogs nutre vaidades estilísticas e estéticas diversas e, como toda vaidade, é às vezes indiferente à eventual audiência.
4. O consumo de um produto se auto-estimula
A vendinha do Seu Chico trazia novidades que se estocavam em nossa fantasias consumistas aprendizes e, no máximo, em nossos álbuns de figurinhas. O desenvolvimento industrial continuou encharcando nossas vidas de produtos que se multiplicavam porque estimulou a produção de outros atrás e à frente deles na linha de produção. Hoje a realidade virtual tem dentro dela mesma a recriação exacerbada da 'realidade material' com seu empório de ofertas e estímulos aos gostos autodestrutivos e bélicos, consoantes com a natureza expoliante do sistema capitalista no que acredito estar em seu limite, haja vista a atual crise mundial. O álbum de figurinhas virava uma obra em aberto se não fosse completado, remoíamos meses a fio o desfecho daquela coleção limitada de heróis e máquinas. Os jogos de realidade virtual exigem o cumprimento rápido de etapas para que um próximo jogo seja adquirido e tome seu lugar como desafio ao instinto violento crescente do jogador.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

De quando não se tem nada a dizer de novo

Faz de conta que estou escrevendo uma carta. "Por aqui anda tudo bem, sem novidades...." Mentira!Tudo bem uma ova justamente porque não há novidades. É este vício moderno da novidade, do produto novo, do lançamento, do original sempre, do inédito, que nos enterra e ameaça de morte a carta. Porque blog não tem nada a ver com carta no sentido que ele deve ser um grande diário de novidades. A maioria das cartas só cumpria o papel de unir informação comum do dia-a-dia das pessoas separadas no tempo e no espaço. A ânsia pelo novo, pelo original é o atestado de nossa incompletude como seres humanos, que deveriam estar interligados por firmes laços de tradição e espírito de grupo. O sucesso é a mais bela e pomposa tradução do egoísmo humano.
A religião deveria dar conta deste problema. Mas como, se o ideal da "re-ligação" [religião vem do latim religare] parece também convertido quando muitos dos ídolos religiosos têm a função espiritual de ascenção em terra, para satisfazer necessidades particulares, e não de redenção, ou exemplo? Os mitos e ídolos religiosos são convertidos em instrumentos espirituais do sucesso, que se confunde com sobrevivência no imaginário desesperado do crente. Depois de saltarmos mecanicamente para o campo da fé, o que para mim está soando esquisitíssimo neste momento, porque não costumo abordar este tema difícil, continuemos a idéia da carta, que levou à da novidade.
A necessidade de termos que dizer sempre algo novo implica odiarmos a noção de cotidiano, do repetitivo, do ritual, por exemplo nosso trabalho ou ganha-pão diários. O trabalho é anti-novidade, anti-sucesso. No entanto, é só a partir dele que podemos obter o sucesso, do jeito que o imaginamos como fundamental para a vida. Ocorre que sucesso e originalidade não são fundamentais na vida e o trabalho rotineiro, ritualístico e metódico é apenas condição sine qua non da existência do homem em grupo. O momento em que a noção de sucesso surgiu e dominou nossas mentes e até corrompeu a noção nobre da religião não saberemos precisar. Certamente relaciona-se com o fato de um indivíduo ou grupo começar a se beneficiar sozinho do trabalho do grupo e aí isto deve-se perder de vista na história.
Mas é no lixo do suplérfluo que as novidades e os sucessos produzem é que encontramos o arquétipo do verdadeiro trabalho humano. Está lá, impresso de alguma forma. No avesso, no viés, mas está lá. É só não prestigiar a obra como sucesso, distanciar-se dela e ao mesmo tempo a ter como produto de um coletivo de que fazemos parte. Assim, decerto que desaparecerá para nós a rastro da experiência da usura e surgirá a essência humana do negócio, assim como o do remetente singelo de uma carta para seu interlocutor, narrando-lhe as parcas novas de seu dia-a-dia.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

De quando não se tem nada a dizer

Então vamos cá mais uma vez? Para o bass fond das letrinhas voadoras que carregam nossas ideias miúdas. Vamos, pra desvendar o que penso, se por acaso me lerem. E se ninguém ler também está bom. É só mastigação mental necessária para reaquecer os ânimos e continuar a vidinha. No entanto, um texto é pra ser lido... Um discurso (no seu sentido mais amplo, de um "psiu" a uma palestra) é pra ser recebido. Quando ele não chega onde tem que chegar por qualquer motivo, mesmo assim ele não é um discurso natimorto, não é uma palavra disperdiçada. Se torna comunicação latente, pulsante, pronta para ser lançada. O importante é emitir. Freud já nos mostrou: falar é o grande remédio.
Mas por que esse meta-papo chato? Para mostrar como o desnorteamento de nosso mundo e nossa descrença nas instituições e nas pessoas nos levam a querer pesquisar alguma identidade na natureza de nossa própria expressão, nas palavras, nos gestos, nas posturas, nas fotos em revistas, no orkut etc. A crítica da realidade em múltiplas camadas e ângulos realizada por nossos discursos, nas ciências e nas artes, configura o que alguns estudiosos resolveram chamar 'pós-modernidade'. Mas a tentativa de realocação de um centro para nossa identidade vem ocorrendo a pelo menos meio milênio, depois que perdemos de vez as referências exotéricas que guiavam as vidas de nossas instituições. Não que era época melhor ou pior que agora, mas lá havia projetos que resultaram em produtos históricos consistentes.
Este mundo dos discursos descentralizados nos entorpece. Vagamos em busca de satisfações forjadas para que consumemos mais e mais simulacros de verdades. É preciso mais estômago. Mas igualmente são necessários mais ouvidos e mais bocas bem abertos para que a maré desses discursos pós-modernos não nos engula e possamos sair dela, náufragos das verdades errantes, porém agarrados àquela uma, a qual acreditarmos ser a verdade, mesmo achando estar ela em um pequeno texto.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Penso, logo registro

Foi a sacação de que o mundo da expressão passa pela chamada crise de autoria que me impulsionou a querer escrever aqui. Hoje em dia, qualquer pessoa com um celular na mão pode criar e expor para o mundo sua criação em texto ou imagem. É evidente que não se trata da democratização dos meios de comunicação como alardeiam alguns. Um celular ainda custa caro para muitos. É mais um item de fetiche mercadológico e, por isso, um instrumento de separação social. No entanto, dispositivos de comunicação e de reprodução da comunicação estão ficando cada vez mais populares, alargando para cada vez mais pessoas as possibilidades de produções de comunicação rápidas e abrangentes.
Este blog é só mais um dos milhares que se atiram como produtos de expressão do individualismo moderno. Nossas visões de mundo tornaram-se produtos. E não basta comprar, é preciso zapear ou navegar porque é na variedade que, primeiro, se tem a atenção prendida e, em seguida, o ato da escolha da audiência. Por enquanto, o estágio intermediário da veiculação virtual está jogando as cartas e lucra. Outro estágio intermediário da comunicação, outrora poderoso, o do suporte físico da mensagem, padece. O termo "pirataria" não faz outra coisa que denunciar o valor mercadológico das peças copiadas.
Mas quem passará a lucrar agora que o próprio suporte físico da criação estão derretendo juntamente com a identificação da sua autoria? Como dissemos, por enquanto são os donos da rede. E o longínquo e esquecido autor...? Os antigos filósofos e aedos gregos até ganhavam seus tostões pelos seus discursos mas não havia mecenas ou produtor que lucrassem com a criação alheia. A obra moderna passou a ter a autoria reconhecida no "direito autoral", verdadeira semi-proletarização do trabalho do autor, que hoje pode estar prestes a se libertar através da obra "sem autor",ao contrário do que podemos pensar. A obra, por sua vez, também está livre para surgir apenas de mãos que realmente têm prazer de criar, sem vistas ao mercado.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Nosso primeiro porre

Primeira transa nada. É o primeiro porre a coisa mais importante na vida de qualquer adulto que se preze. A epifania de uma vida pode estar embutida no primeiro porre. Ele é determinante. É depois do primeiro porre que tomamos rumo. Ou não tomamos, o que também é válido. Atenção conservadores de plantão, isto não é incitamento ao vício. Refiro-me ao que podemos chamar de "porre lúcido", aquele que vem antes ou pode se tornar o "porre pé-na-jaca". Esse último quase sempre não é recordável e dá trabalho para os outros. Para não se tornar um explorador do saco alheio, fique apenas no porre lúcido.
É só depois do primeiro porre que os senhores podem dizer que são adultos. Ele é o primeiro desgarramento de seus pezinhos da atmosfera do politicamente correto, o primeiro momento em que viram a vida pelo viés da desmesura pra valer. O primeiro porre é a primeira infração aos atos e fatos das coisas bem arrumadinhas. Por isso ele é revelador e desmascarador. Porque é na escuridão das coisas bem arrumadinhas que se formam as teias que nos envolvem e nos paralisam lentamente, as teias da perda da inocência... E o "insight porrífico" nos deixa ver e nos indignar contra isso. É a primeira tentativa de anular planos que pareceram traçados para nós à nossa revelia.
O primeiro pilequinho é a reposição dos nossos cacos depois da passagem dolorosa para a nossa vida adulto-burguesa. Um brinde para o primeiro porre amigão de nossas vidas. Para o porre que nos guiou pela linha dançante da sargeta, para o que puxou outros porres e para aquele que serviu para que nunca mais bebêssemos. Enfim, celebremos aquele primeiro porre que nos disse e nos diz até hoje que essa vida definitivamente não é um porre.

Narre aqui também seu primeiro porre...