segunda-feira, 2 de março de 2009

Viramos produto na vendinha do Seu Chico

Existiam nas vendas em que a gente ia quando era criança aquelas rodas giratórias de compartimentos de balas e doces miúdos. Algumas dessas geringonças, que devem ter algum nome que alguém pode me lembrar depois, soavam quando giravam. Havia também a vitrine do balcão com mais doces, normalmente os maiores, os pacotes de biscoito e pipocas, que não cabiam lá na gerigonça giratória. Tínhamos ali dentro da venda do seu Chico algum poder no ato da escolha, era nossa perspectiva que reinava ali no ato da aquisição do produto, que tinha que saltar aos nossos olhos sim, chamar a atenção de nossos sentidos para ser barganhado pelo dinheiro. Mas a vidraria de açúcar da venda não nos incluía entre seus produtos como, não nos sentíamos pequenos a ponto dos espaços entre os compartimentos das guloseimas não se tornarem, como hoje, corredores de um shopping center. Não me digam que o meu saudosismo compromete a percepção histórica dos fatos. Comprar não é mais a mesma coisa que há pelo menos pouco mais de meio século porque:
1. Temos que consumir escolhendo entre cada vez mais inúmeras opções e são necessários cada mais itens para satisfazer as necessidades fetichistas e as inventadas
Dizer que somos fetichistas, todos sem exceção, pode causar algum frisson nas mentes mais tacanhas. Mas sim, nossa cultura é a do fetiche, entendido aqui como a idolatração de uma parte ou detalhe de um produto quando não podemos obtê-lo na sua inteireza e plenitude. Da estampa de uma camiseta à marca de um carro: tudo é fetiche. Amamos as partes porque elas nos remetem à busca constante e frustrante do gozo máximo das satisfações mesquinhas de indivíduo ahistórico e apátrida. As guloseimas foram convertidas em pedacinhos de sucesso e glória que abocanhamos no frenesi consumista.
2. Escolher entre mais opções leva mais tempo e a maior variedade aumenta ainda mais o tempo gasto no ato da compra
Isto contribui para o desenraizamento histórico em todos os aspectos. A alienação em relação à tradição deixa-nos a mercê de discursos coisificantes sem lastro com valores com que estávamos acostumados. Por exemplo, para as novas gerações, torna-se mais fácil admitir o interesse material entre as relações humanas, que antes os romances e o drama se exercitavam em revelar. Ironia e comédia são os veículos estéticos predominantes na representação dessas relações hoje em dia, atestando a inquietação artística do destino trágico ligado a elas.
3. As necessidades fetichistas e inventadas acumulam-se e se descartam rapidamente
O supérfluo se reproduz na sensação de reinvenção constante de nós mesmos como produtos de mercado. Só pra ficar em torno de nossas faces, este painel de necessidades compensatórias de carências e ausência de contato humano se reorganiza infinitamente nas capas de revistas, nas "voltas por cima" e nas "repaginadas" do famoso ou famosa do momento. Um semestre depois tais capas vão expirando no imaginário popular enquanto a celebridade em questão planeja ou não um novo releasing, dando sua cara aos tapas da maquiagem e do julgo da audiência novamente. Mesmo escrever em blogs nutre vaidades estilísticas e estéticas diversas e, como toda vaidade, é às vezes indiferente à eventual audiência.
4. O consumo de um produto se auto-estimula
A vendinha do Seu Chico trazia novidades que se estocavam em nossa fantasias consumistas aprendizes e, no máximo, em nossos álbuns de figurinhas. O desenvolvimento industrial continuou encharcando nossas vidas de produtos que se multiplicavam porque estimulou a produção de outros atrás e à frente deles na linha de produção. Hoje a realidade virtual tem dentro dela mesma a recriação exacerbada da 'realidade material' com seu empório de ofertas e estímulos aos gostos autodestrutivos e bélicos, consoantes com a natureza expoliante do sistema capitalista no que acredito estar em seu limite, haja vista a atual crise mundial. O álbum de figurinhas virava uma obra em aberto se não fosse completado, remoíamos meses a fio o desfecho daquela coleção limitada de heróis e máquinas. Os jogos de realidade virtual exigem o cumprimento rápido de etapas para que um próximo jogo seja adquirido e tome seu lugar como desafio ao instinto violento crescente do jogador.

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