terça-feira, 10 de março de 2009

A falsa banalização das palavras

As palavras também têm crises de identidade. Depois que uma palavra fica na moda, salpicando na boca do povo, nos holofotes da mídia ou em textos mais "sérios" quaisquer, ela não fica mais a mesma que antes. Ou seja, seu significado é abalado pelo debater dela na língua. Vamos acompanhar por exemplo o que houve nos últimos anos com a palavra "risco", e também com uma sua correlata, "limite".
"O meu prazer agora é risco de vida", da letra de "Ideologia" (1985) de Cazuza, contém a palavra "risco" empregada para apontar a noção de perigo, de inexorabilidade, neste caso decorrente do terror causado pelas campanhas contra a proliferação da Aids àquela época. Hoje em dia se fala em "risco Brasil", significando algo como um dado matemático acima ou abaixo do qual algo nocivo, não necessariamente morte iminente, ocorre. Ou seja, neste emprego mais recente da palavra "risco", ultrapassando-se ou não a linha que separa o seguro do não seguro indicado na expressão "risco Brasil", as consequências são de outra natureza. Elas são, não por acaso, de natureza econômicas, indicando mais exatamente "prejuízo", consoante com o rumo capitalista de nossa história.
O caso de "limite" é mais curioso porque a trajetória dela no discurso leva a quase inversão do significado quando ela também adentra o campo semântico das relações econômicas. Da idéia de instransponibilidade, de margem definida de um lugar para outro em um espaço qualquer, contida no título do filme Limite (1932) de Mário Peixoto, por exemplo, passa-se para outra idéia hoje em dia como na expressão "limite de crédito". Mas houve com o significado da palavra um afrouxamento da noção de limite propriamente dito no meio da classe média em que ela é usada corriqueiramente. "Estou usando o limite do banco", "Pega do limite", "Olha, meu limite aumentou" são exemplos de como a mudança de contexto transformou o significado da palavra, aqui também atendendo a interesses de quem move o sistema produtivo.
Os dois casos sinalizam afrouxamentos de significados que antes eram mais rigidamente definidores. Pode ser que num futuro talvez próximo elas nem mais existam com esses valores semânticos e sejam substituídas por outras palavras. Mas o que é importante aqui é assinalar que o uso e abuso de certas palavras não se dá de maneira inocente. As mudanças no discurso acompanham rumos históricos e até serve para nos avisar de tendências como a falta de responsabilidade de natureza econômica dos comandantes de megafinanças que culminou com a atual crise mundial. Nesse sentido, tentar interpretar essas mudanças produz o mesmo efeito revelador que a arte exerce em nós, vítimas à deriva das ondas financeiras e discursivas do capitalismo.

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