quinta-feira, 19 de março de 2009

Existo. Logo penso.

Existe um debate antigo sobre se nossa capacidade de apreender o mundo vem de nós mesmos ou é produzida e perpetuada somente na relação entre os indivíduos em seu meio. É a linguagem individual ou social? Como em todos os debates filosóficos, a resposta deve ser a mesma: ambas visões valem. E o que se segue é o uso das duas respostas de forma ideológica por partidários de uma opinião ou de outra.
Um perigo no mato indicado pelo chacoalhar de folhas fazia o índio perceber que se trata de perigo eminente e talvez até identificar o animal que se aproxima. Isso porque ele já viu acontecer, experienciou aquilo de alguma forma, ou foi-lhe informado de alguma maneira. As fases da lua, chuvas e eclipses, a movimentação de animais, a repetição na natureza enfim, determinavam ações ou "inações" que iam sendo armazenadas e transmitidas quer pela tradição oral quer pelas primeiras formas de pintura ou escrita. Há então a comunhão do ato individual desperto pela emergência natural e da experiência compartilhada socialmente através da comunicação por trás das iniciativas de plantar ou colher, mudar/fugir ou ficar onde se estava etc.
A história como descrição tem anulada seu valor de verdade a não ser que admitamos sempre a parcialidade obrigatória na descrição dos fatos porque sempre há de se tomar parte ou da essência do indivíduo ou da supremacia do material como "escreventes" da história.
Às radicalizações das duas ideias, a da origem individual ou social de nossa percepção, corresponderam o nazismo e o marxismo respectivamente, isto numa perspectiva bastante ousada porém intuitiva. O primeiro produziu o arraso europeu após a 1ª Guerra Mundial e deixou lastro tardio na América Latina dos anos 50 aos 70. O segundo ampliou seu conceito à categoria de significação e ganha realce devido a atual crise financeira depois de impulsionar fértil teorização social e cultural a respeito do mundo desde que surgiu no final do século XIX até o momento. Vide para isso os formalistas russos, a escola de Frankfurt e seus discípulos contemporâneos, Raymund Williams na Inglaterra e alguns intelectuais da esquerda latinos, africanos e insulares atlânticos.

terça-feira, 10 de março de 2009

A falsa banalização das palavras

As palavras também têm crises de identidade. Depois que uma palavra fica na moda, salpicando na boca do povo, nos holofotes da mídia ou em textos mais "sérios" quaisquer, ela não fica mais a mesma que antes. Ou seja, seu significado é abalado pelo debater dela na língua. Vamos acompanhar por exemplo o que houve nos últimos anos com a palavra "risco", e também com uma sua correlata, "limite".
"O meu prazer agora é risco de vida", da letra de "Ideologia" (1985) de Cazuza, contém a palavra "risco" empregada para apontar a noção de perigo, de inexorabilidade, neste caso decorrente do terror causado pelas campanhas contra a proliferação da Aids àquela época. Hoje em dia se fala em "risco Brasil", significando algo como um dado matemático acima ou abaixo do qual algo nocivo, não necessariamente morte iminente, ocorre. Ou seja, neste emprego mais recente da palavra "risco", ultrapassando-se ou não a linha que separa o seguro do não seguro indicado na expressão "risco Brasil", as consequências são de outra natureza. Elas são, não por acaso, de natureza econômicas, indicando mais exatamente "prejuízo", consoante com o rumo capitalista de nossa história.
O caso de "limite" é mais curioso porque a trajetória dela no discurso leva a quase inversão do significado quando ela também adentra o campo semântico das relações econômicas. Da idéia de instransponibilidade, de margem definida de um lugar para outro em um espaço qualquer, contida no título do filme Limite (1932) de Mário Peixoto, por exemplo, passa-se para outra idéia hoje em dia como na expressão "limite de crédito". Mas houve com o significado da palavra um afrouxamento da noção de limite propriamente dito no meio da classe média em que ela é usada corriqueiramente. "Estou usando o limite do banco", "Pega do limite", "Olha, meu limite aumentou" são exemplos de como a mudança de contexto transformou o significado da palavra, aqui também atendendo a interesses de quem move o sistema produtivo.
Os dois casos sinalizam afrouxamentos de significados que antes eram mais rigidamente definidores. Pode ser que num futuro talvez próximo elas nem mais existam com esses valores semânticos e sejam substituídas por outras palavras. Mas o que é importante aqui é assinalar que o uso e abuso de certas palavras não se dá de maneira inocente. As mudanças no discurso acompanham rumos históricos e até serve para nos avisar de tendências como a falta de responsabilidade de natureza econômica dos comandantes de megafinanças que culminou com a atual crise mundial. Nesse sentido, tentar interpretar essas mudanças produz o mesmo efeito revelador que a arte exerce em nós, vítimas à deriva das ondas financeiras e discursivas do capitalismo.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Viramos produto na vendinha do Seu Chico

Existiam nas vendas em que a gente ia quando era criança aquelas rodas giratórias de compartimentos de balas e doces miúdos. Algumas dessas geringonças, que devem ter algum nome que alguém pode me lembrar depois, soavam quando giravam. Havia também a vitrine do balcão com mais doces, normalmente os maiores, os pacotes de biscoito e pipocas, que não cabiam lá na gerigonça giratória. Tínhamos ali dentro da venda do seu Chico algum poder no ato da escolha, era nossa perspectiva que reinava ali no ato da aquisição do produto, que tinha que saltar aos nossos olhos sim, chamar a atenção de nossos sentidos para ser barganhado pelo dinheiro. Mas a vidraria de açúcar da venda não nos incluía entre seus produtos como, não nos sentíamos pequenos a ponto dos espaços entre os compartimentos das guloseimas não se tornarem, como hoje, corredores de um shopping center. Não me digam que o meu saudosismo compromete a percepção histórica dos fatos. Comprar não é mais a mesma coisa que há pelo menos pouco mais de meio século porque:
1. Temos que consumir escolhendo entre cada vez mais inúmeras opções e são necessários cada mais itens para satisfazer as necessidades fetichistas e as inventadas
Dizer que somos fetichistas, todos sem exceção, pode causar algum frisson nas mentes mais tacanhas. Mas sim, nossa cultura é a do fetiche, entendido aqui como a idolatração de uma parte ou detalhe de um produto quando não podemos obtê-lo na sua inteireza e plenitude. Da estampa de uma camiseta à marca de um carro: tudo é fetiche. Amamos as partes porque elas nos remetem à busca constante e frustrante do gozo máximo das satisfações mesquinhas de indivíduo ahistórico e apátrida. As guloseimas foram convertidas em pedacinhos de sucesso e glória que abocanhamos no frenesi consumista.
2. Escolher entre mais opções leva mais tempo e a maior variedade aumenta ainda mais o tempo gasto no ato da compra
Isto contribui para o desenraizamento histórico em todos os aspectos. A alienação em relação à tradição deixa-nos a mercê de discursos coisificantes sem lastro com valores com que estávamos acostumados. Por exemplo, para as novas gerações, torna-se mais fácil admitir o interesse material entre as relações humanas, que antes os romances e o drama se exercitavam em revelar. Ironia e comédia são os veículos estéticos predominantes na representação dessas relações hoje em dia, atestando a inquietação artística do destino trágico ligado a elas.
3. As necessidades fetichistas e inventadas acumulam-se e se descartam rapidamente
O supérfluo se reproduz na sensação de reinvenção constante de nós mesmos como produtos de mercado. Só pra ficar em torno de nossas faces, este painel de necessidades compensatórias de carências e ausência de contato humano se reorganiza infinitamente nas capas de revistas, nas "voltas por cima" e nas "repaginadas" do famoso ou famosa do momento. Um semestre depois tais capas vão expirando no imaginário popular enquanto a celebridade em questão planeja ou não um novo releasing, dando sua cara aos tapas da maquiagem e do julgo da audiência novamente. Mesmo escrever em blogs nutre vaidades estilísticas e estéticas diversas e, como toda vaidade, é às vezes indiferente à eventual audiência.
4. O consumo de um produto se auto-estimula
A vendinha do Seu Chico trazia novidades que se estocavam em nossa fantasias consumistas aprendizes e, no máximo, em nossos álbuns de figurinhas. O desenvolvimento industrial continuou encharcando nossas vidas de produtos que se multiplicavam porque estimulou a produção de outros atrás e à frente deles na linha de produção. Hoje a realidade virtual tem dentro dela mesma a recriação exacerbada da 'realidade material' com seu empório de ofertas e estímulos aos gostos autodestrutivos e bélicos, consoantes com a natureza expoliante do sistema capitalista no que acredito estar em seu limite, haja vista a atual crise mundial. O álbum de figurinhas virava uma obra em aberto se não fosse completado, remoíamos meses a fio o desfecho daquela coleção limitada de heróis e máquinas. Os jogos de realidade virtual exigem o cumprimento rápido de etapas para que um próximo jogo seja adquirido e tome seu lugar como desafio ao instinto violento crescente do jogador.

Narre aqui também seu primeiro porre...