sexta-feira, 3 de julho de 2015

De quem é o corpo?

Este raiar de século iluminado de tecnologias que cintilam pelas urbanidades desvela mais escancaradamente nosso sombrio e sinistro desejo pelo corpo. Essa frase, fosse escrita há cem anos, seria igualmente verificável no contexto das novidades da belle époque ainda vigentes. E mais tarde seu argumento também se aplicaria à ideologia feminista e de outras minorias de a partir de meados do século passado, principalmente se a laureamos com certo materialismo histórico.  
A diferença é que hoje em dia a compulsão pelo corpo nos aspectos estético, libidinoso e, por que não dizer "forense", é astronomicamente potencializada pelas atuais formas de transmissão de imagens nas redes eletrônicas. Muitas vezes anônimo, ou não identificado na avalanche de dados em tráfego na internet, o pipocar dessas imagens produzem ou intensificam a fissura pelo corpo, quer seja nosso ou do outro, quer seja vivo, ou também morto.
Tais imagens de corpos em efusão, veiculadas em suportes em um passado recente, costumavam ser inspiradoras de fantasias inocentes, de voyeurismos, de masturbações e de algum suspense ou prazer necrofílico. Inspirações das quais Religião e Ética se ocupavam para tentar coibir ou recanalizar...
Agora não. Saltando aos plufts aos nossos olhos, quase sem edição, sem moldura, a veiculação instantânea produz primeiro a exibição, depois quem sabe a reflexão sobre ela. O que leva à indagação: de quem é o corpo ali apresentado? Será mesmo do ser que porta ou portava a vida nele? Uma vez que "ganhou o mundo" na internet, pertence ao coletivo? Ou seriam esses corpos ali apresentados, de acordo com alguns preceitos religiosos em voga, maquinagens de forças destrutivas de um mal encarnado?
Tamanho é o número de suas "visualizações", que essas imagens representanm mais, ao que parece, heroicos símbolos merecedores de algum sacrifício comungatório. Dessa forma, o corpo super abusado sofredor de vicissitudes desfila a esmo e se consome. Seu destino incerto soa com o da vida. Sobre ele cabe apenas um certo controle de nossa parte, para que não seja deletado ou exterminado definitivamente.
Por outro lado, a super exposição nas redes de imagens mundo afora pode ser também auto-alimentadora. Reproduz-se mais e mais sob o impulso e excitação imagética, mesmo após a conquista do direito também ao "não-corpo". Ou seja, do direito a recursos democráticos que impedem a disseminação do corpo per si (falando aqui simplesmente dos métodos sanitários de controle e de reprodução de espécies) e da disseminação de suas réplicas postadas eletronicamente (alguma legislação em débil implantação).
Assim poderíamos falar então em uma nova educação da imagem. Uma vez desinibida, a alta exposição do corpo, qualitativamente e quantitativamente, requer que nossas mentalidades, nossa ética retrabalhem conceitos, reprocessem desejos de maneira a vasculharmos a essência por trás (ou por baixo) desse corpo reapresentado ali aos nossos olhos. O que queremos dele? O que nos leva a ele? Pode ser fetiche em relação ao corpo-mercadoria. Pode ser identificação, vontade (in)consciente de estar naquele lugar de exposição. Enfim, esse corpo "eletrônico" é apresentado em aspectos com os quais não estamos acostumados a lidar. E definitivamente, não estamos ainda muito íntimos e à vontade para poder responder: de quem é esse corpo?


Narre aqui também seu primeiro porre...