quarta-feira, 22 de abril de 2009

O não-lugar das fronteiras no pós-moderno e a praça de Alfenas

Há quinze anos, o lugar onde os jovens frequentam à noite em Alfenas, cidade quase médio porte do sul de MG, apresenta a mesma conformação física geral, mas a massa juvenil que ocupa os espaços de "balada" ou "pré-balada" organizam-se e se distribuem hoje de maneira bastante distinta em relação a duas décadas atrás. Naquele passado recente, tanto o espectro da estratificação social, ligeiramente mais largo e descontínuo, como o comportamento grupo-identitário, mais fechado e excludente, propiciavam a formação de espaços mais definidos de encontro, algo como guetos no céu aberto noturno da praça pública daquela pacata cidade. Esses grupos eram separados mormente pela classe social. Por exemplo, os jovens filhos da "elite" ficavam ao redor de uma esquina específica, sob as luzes de fachadas dos luminosos do comércio local, enquanto os jovens da classe inferior arranjavam-se ao longo da calçada oposta, como de plateia para o outro grupo da calçada "iluminada". Outros grupos numericamente menores como alguns punks, gays e usuários de ilícitos alienantes, cada qual tinham suas partes mais ou menos definidas e específicas demarcadas ao longo do centro da cidade à noite.
Hoje a conformação geográfica noturna desses grupos é mais homogênea, instável e fluída, não havendo mais lugares certos de se encontrar este ou aquele grupo. Por outro lado, as marcas e acessórios físicos de identificação dos jovens multiplicaram-se e se alastraram pelas classes sociais. Deixaram de ser marcas de estilo socialmente discriminadas para serem marcas de estilo politicamente toleradas, tanto que passaram a se distribuir mais amplamente pelas diferentes classes sociais. Tatuados eram bastante associados a classes mais baixas devido ao estigma da criminalidade que a marca impingia. Já os "emos" de hoje, por exemplo, são tanto ricos como pobres.
Com efeito, antes se fazia a separação de território de acordo com a classe social. A delimitação por estilo ou gênero vinha depois da separação de classes, formando sub-categorias dentro das faixas de classe. Hoje são essas marcas identitárias se sobrepõem aos isolamentos de classes sociais. Ou seja, os jovens portam hoje no discurso do corpo aquilo que antes era necessário se isolar em guetos. Vivíamos há vinte anos o enfraquecimento da segregação física de nossos inimigos. Era em parte o efeito dominó da queda de um famoso muro europeu. Era o começo da abertura escancarada para o "mundo globalizado e tolerante", um mito necessário à manutenção do sistema capitalista tardio. Essa aparente diluição de fronteiras físicas e o desenho de marcas no corpo e no visual dos jovens entre essas duas gerações correspondem-se. Ambos são necessários à intensificação do processo de conversão do sujeito reificado em objeto de si próprio (Foucault). Assim, a variedade do ser humano vale para o mercado em suas diferenças e a proliferação de sinais físicos "naturais" (cor, etnias, gênero, sexo et) ou postiços (marcas, penteados, piercings etc) nos corpos têm sua exposição incentivada por essas razões mercadológicas. As reivindicações políticas por parte dos manifestantes dessas diferenças são um fator alimentador do processo e ao mesmo tempo limitante da suposta abertura total porque faz manter essas mesmas diferenças.
Este processo de aparente super-inclusão de todas as diferenças na "aldeia global", para usar termo daquela época, foi gradualmente acompanhado por derrubadas de fronteiras apenas no campo ideológico-mediático nutrido pelo sistema capitalista. Isso ajuda a disfarçar o distanciamento entre as classes sociais. Se hoje os jovens não estão "cada um em seu quadrado" na praça de Alfenas à noite, não é porque houve democratização com aumento da tolerância, mas sim porque as políticas identitárias reinvindicatórias, na forma como se realizam hoje e comentadas acima, alastraram-se de maneira a arrastar a periferia para o centro e promover o convívio, logicamente não raro problemático, entre as classes e os grupos. A "gangue agora sou eu". E é politicamente correto a promoção cultural tanto da bandinha municipal como um show de funk, ambos para o usufruto de todas as classes e grupos passantes que se revezam circulando, sem lugar fixo, "naquela praça, naquele banco" do centro de Alfenas à noite.

domingo, 12 de abril de 2009

O valor de uso e o valor ideal das coisas

Sabemos que as coisas têm seu valor de uso e seu valor de troca. Que a distância e a tranformação entre esses valores é ditado pela técnica no sentido uso-troca e pelo comércio no sentido troca-uso. Ou seja, quem devolve algo que antes tinha um valor de uso limitado, como minério, por exemplo, em chips eletrônicos é detentor de capital acumulativo, que por sua vez se converte em investimento tecnológico para produzir mais "manufaturas" (valor de troca) a partir de mais "matérias-primas" (valor de uso) mais baratas.
Cada coisa contida numa esfera cultural oscila as possibilidades de uso e troca. A conversão de uso para troca é feita especulando-se o maior valor possível, mas nunca é maior que o valor de troca do objeto convertido porque simplesmente não há a conversão, não compensa para a parte interessada no valor de troca futuro do objeto e então ela procura explorar outra fonte da coisa.
A globalização acentuou as consequências do processo exploratório dessa conversão. O que antes era tido como ganha-pão ou artesanato que produzia objetos com valores de troca mais simples teve que se aperfeiçoar nas "co-"operativas para aumentar o processamento de matérias-prima ou de manufaturas mais simples em produtos com mais valor de troca. Isto sob sacrifícios humanos que são mostrados sorridentemente na Globo...
O acirramento da polarização entre os valores de uso e de troca que atribuímos às coisas no mundo moderno está no âmago da problemática do capitalismo financeiro atual. É que os valores de troca terminam por quase vaporizar o objeto dando espaço para as instâncias de poder agirem de maneira a impor mais ampla e fortemente sua ideologia. O desenvolvimento técnico também permite a acumulação desses mesmos valores de troca em um objeto, contribuindo para a nuvem ideológica do círculo reificante sobre este objeto.
Esclarecendo essa dinâmica: hoje em dia, os valores de uso de um objeto são muito rapidamente convertidos em valores de troca. Estes, também se esgotam rapidamente no consumo supérfluo e novo valor de uso lhe é atribuído e fugazmente convertido em valor de troca de novo e assim por diante. Por exemplo, o primeiro telefone celular é bem diferente nas suas funções (valor de troca) quando comparado com algum último modelo: o primeiro usava-se com boca e ouvido e os de hoje se usam mais com dedo e olhos. Ou seja, a conversão entre valor de uso e troca inflacionou-se para o lado da troca a ponto de as próprias necessidades e os parâmetros de troca do objeto em questão terem que ser estimulados e reinventados.

Narre aqui também seu primeiro porre...